No dia 18/06/2010 eu cumpri no meu outro Blog, o Entremundos, o doloroso dever de noticiar a morte de José Saramago, grande autor português, único escritor de língua portuguesa a ganhar um Prêmio Nobel de Literatura. Na dita época transcrevi um trecho de um texto de Rogério Soares, amigo da UNEB e dono do Blog Navegantes ao mar. Ele dizia:
"Quando Gandhi foi assassinado por um fanático nos anos 40, o filosofo francês Jean-Paul Sartre disse dele: “no futuro ninguém acreditará que um homem como Gandhi existiu”. Por razões óbvias, as gerações futuras duvidarão que um homem como José Saramago viveu depois de Gandhi. Um e outro, Gandhi e Saramago, foram ardorosos humanistas. Ambos empunharam as únicas armas que conheciam, a palavra, para conquistar os sonhos de um mundo justo, decente, sem fanatismo, compromissado com causas verdadeiramente dignas de se engajarem. Defenderam, quando parecia indefensável, a causa dos menos favorecidos. Pregaram, sem nenhum proselitismo, a igualdade e a tolerância, em meio ao mais profundo caos. Viveram com o único propósito de esclarecer aos homens que aquilo que lhes aprisionavam eram eles mesmos. Livres de toda ignorância, política, religiosa, social, escolar, herdada ou forçada, todos os homens poderiam refazer os seus caminhos. Creio que como Gandhi, José Saramago, assegurou enquanto estava vivo o seu nome na imortalidade."
Hoje, dia 18/06/2011, venho para novamente homenagear Saramago, agora por ocasião do aniversário de um ano de sua morte. Posso, sem nenhum medo de errar, dividir a minha experiência como leitor em antes e depois de José Saramago. Ouvi falar primeiramente do grande mestre português numa reportagem do Vídeo Show. O repórter estava na porta de um cinema entrevistando alguns globais que tinham ido assistir a versão cinematográfica do Ensaio sobre a cegueira. Todos elogiaram muito o filme e diziam que foram assistir mais por curiosidade, para saber se o diretor do filme, Fernando Meireles, conseguiria retratar na telona do cinema todo o horror que Saramago tinha imaginado para um mundo só de cegos. Fui tomado por uma curiosidade e corri para a internet para saber do que se tratava o Ensaio. Assisti o trailler no youtube e me senti impelido a ler a obra. Fiz comigo mesmo o compromisso de só ver o filme depois de ler o livro, o que foi ótimo. O filme é quase perfeito. Meirelles soube explorar ao máximo a obra, mas não existe a menor possibilidade de explorar toda a imensidão do livro num filme com duas horas de duração. Sendo assim, toda a carga filosófica do Ensaio sobre a cegueira foi retirada, ficando apenas a exibição da sequência de acontecimentos, desprovidas de qualquer profundidade. Uma pena.
Na minha experiência, Saramago é um ladrão. Foi ele que roubou-me a inocência. Levou de mim a crença cega em uma humanidade boa, perfeita, criada por Deus e destinada à glória. Foi ele quem fez com que os pilares da nossa suposta civilização balançassem e gerassem dúvidas: Somos mesmos civilizados? Até que ponto? Somos os mesmos quando estamos na frente dos outros e quando não tem ninguém olhando? Como somos realmente sem a maquiagem da civilização? No Ensaio sobre a cegueira ele faz com a humanidade como se faz com um furúnculo: espreme-se e coloca-se toda aquela carga apodrecida para fora. É algo feio, fétido e horripilante, mas tão humano quanto o nosso egoísmo, que ele trata assim: "Ainda está para nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra". Ou assim: "É um velho costume da humanidade, esse de passar ao lado dos mortos e não os ver". Ou ainda assim: "Dessa massa somos feitos, uma parte de indiferença, outra parte de ruindade". Ao mesmo tempo o mestre soube ver a beleza, principalmente aquela que não está a mostra, a que ultrapassa os limites de um corpo: "Não é pelo aspecto da cara, nem presteza do corpo que se conhece a força do coração".
Foi ele também que levantou questões tão pertinentes: vemos a realidade como ela é ou somos cegos e não percebemos? Quantos cegos serão precisos para se fazer uma cegueira? Em suas sábias palavras: "Por que foi que cegamos? Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso? Diz. Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem".
Não posso dizer que Saramago morreu cedo. Viveu mais de 80 anos. Penso apenas que a humanidade precisava mais de sua palavra. Ficamos mais cegos e mais burros após a sua morte. Mais que isso: ficamos órfãos, como continuamos até hoje órfãos de Clarice Lispector.
Peguei o Ensaio sobre a cegueira e reli três capítulos. Como da primeira vez, ao terminar o livro eu o fechei, curvei-me sobre o meu corpo e chorei. Chorei a minha inutilidade. Chorei o meu egoísmo. Chorei a minha cegueira. Chorei a falta de amor ao próximo. Depois sorri. Sorri porque a cegueira de Saramago é branca como uma folha de papel que permite que se escreva uma nova história, e isso deve ter algo de bom. Sorri porque ainda é tempo. Sorri porque não há nada mais belo do que o ser humano, do que viver neste misto de dor e de beleza. Sorri porque sempre é tempo de abrir os olhos e ver. E o próprio Saramago deixou a receita:
"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara".
(Livro dos Conselhos)
3 comentários:
Emocionei-me com suas palavras tão reais, tão atuais. Compartilho contigo esse sentimento por esse ser que marcou a História da Literatura mundial.
Excelente texto. Merecida homenagem.
Obrigado amigos! A opinião de vocês é muito importante.
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