Corre velozmente, como tudo que cai na internet, a imagem digitalizada de um bilhete enviado por uma professora da cidade de Sumaré, interior de São Paulo, aos pais de um garoto que todos nós vulgarmente classificaríamos com um "encapetado". No bilhete, a professora sugere aos pais do menino que desconsiderem as indicações de "psicólogos fajutos" que mandam que a educação fique apenas na esfera do diálogo e que façam uso de cintadas e varadas para evitar que o estudante entre em encrencas.
Segundo os pais do aluno, o menino é vítima de bullying por parte dos colegas porque a professora diz na frente da turma inteira que ele tem problema de cabeça, que tem doença mental, que faz tratamento e que nunca será ninguém na vida.
Quem é o tal aluno "encapetado"? É um estudante de 12 anos que já passou por diversos profissionais por causa do seu problema. Ao que consta, o menino, que está em tratamento com uma psicóloga, sofre de um mal muito recorrente nos dias hoje: déficit de aprendizagem. Para os menos familiarizados com os novos termos criados pela psicologia, digamos que alunos outrora considerados como encapetados hoje são chamados de portadores de transtornos de déficits que estão ligados à hiperatividade, impulsividade, desatenção e problemas de aprendizagem, como a dislexia. O aluno considerado burrinho ontem, hoje é disléxico e tem déficit de atenção e o aluno capeta é hiperativo e impulsivo, e por aí vai. Notem que estou falando de maneira rasa, sem aprofundamento nos termos, porque não é essa a minha intenção aqui.
A minha primeira reação ao ler ao bilhete foi pensar: "Que mulher burra! Ela mandou por escrito, produziu uma prova contra si mesma!". Após analisar mais friamente, pensei numa outra possibilidade, a de que a burrice era, na verdade, obra do desespero. Eu penso que para uma professora mandar um bilhete desses para o pai de um aluno, ela deve estar totalmente desesperada. Não foi por maldade. O bilhete, em minha opinião, é um pedido de ajuda. A professora está dizendo com todas as letras: "Eu não dou mais conta de lidar com o problema". É uma forma torta, talvez tosca, mas foi a maneira que ela encontrou.
A minha segunda reação foi verificar que me chocou muito mais a quantidade de erros relacionados à escrita do bilhete do que o conteúdo em si. De qualquer maneira, dou um desconto porque imagino que ela devia estar alterada quando escreveu o bilhete e talvez o nervosismo tenha feito com que não percebesse erros na formulação de uma das frases ou na concordância. Levemos em conta que ela é professora de português e, em momentos de tranquilidade, erros tão crassos não passariam desapercebidos.
Não vou perder tempo aqui discutindo se os pais devem ou não fazer uso da força física na educação dos filhos porque a minha opinião já foi expressa em vários outros posts aqui. Eu acho que os pais podem e devem bater nos filhos, seja como medida punitiva, preventiva ou coercitiva. Chamo, todavia, atenção para o fato de que devem ser observadas a finalidade e intensidade. Sou totalmente contra bater gratuitamente e sem critérios, logo, não estou defendendo espancamentos.
Vamos ao que realmente interessa: uma análise da ação da professora. Talvez a professora seja realmente o que muita gente pensa sobre ela: incompetente, frustrada, fria... mas também pode não ser. E não é um bilhete escrito em um momento de ira que irá determinar toda a sua carreira. Não há reclamações contra ela antes do ocorrido, o que me leva a crer que ela não deve ser tão incompetente assim. Tentei descobrir a sua idade, mas não consegui. Ela pode ser uma senhora já bastante cansada de anos de magistério, mas pode também ser uma moça de vinte e poucos anos ainda amargando os anos da inexperiência. Seja ela nova ou velha, uma coisa é certa: NÃO TEMOS FORMAÇÃO para lidar com tal tipo de transtorno. Eu digo "temos" porque me incluo dentro de tal estatística já que também sou professor. Em nossos cursos de licenciatura, temos disciplinas como Didática, Metodologia ou Estágio Supervisionado que nos ensinam a dar aulas, a usar recursos, a fazer aulas mais dinâmicas... Mas, para quem? Para alunos NORMAIS, ou, pelo menos, ditos normais. Somos ensinados a ensinar para alunos sem problemas, sem traumas, sem transtornos, que adoram estudar e que, via de regra, amam livros e tem sede de conhecimento. Isso é muito, muito, muito diferente do que se é encontrado nas salas de aulas, de escolas públicas e privadas, de norte a sul do Brasil.
Querem saber de uma grande verdade? Ei-la: Professor virou saco de pancadas do mundo. Se você entrou aqui achando que eu iria manifestar o meu repúdio a tal atitude tão hedionda em relação ao coitadinho do aluno, talvez se frustre. Eu não serei, em hipótese alguma, mais um socar esse saco de pancadas que a categoria de professores se tornou. A professora já foi afastada do cargo e já está sendo tratada como uma bandida. Não estou defendendo e muito endossando a sua atitude. Ela errou e errou feio, mas não serei mais um hipócrita a fechar os olhos para tal situação e a tratá-la como uma bruxa malvada. Para mim, ela é tão vítima quanto o próprio aluno.
No pedaço de papel escrito a tinta (e talvez com lágrimas) está expresso o pedido de socorro e ao mesmo tempo um "Basta!" que é de toda uma classe que tem sido oprimida há décadas por um sistema mesquinho que nos cobra cada vez mais e nos dá cada vez menos.
Um advogado pode escolher quem quer como cliente. Ele pode escolher se quer defender ou não um acusado de um crime. Um professor, ao contrário, tem que ser professor de todo mundo que lhe colocam nas mãos. A medicina cada vez mais tem se subdividido em categorias e especialidades. Um cardiologista estuda sobre o coração e se dedica a resolver problemas relacionados ao coração. Fígado, baço, pulmões ou rins não lhe interessam. O professor, ao contrário, tem que estudar sobre tudo e lidar com todos os problemas: dislexia, falta de educação, déficit de aprendizagem, déficit de atenção, traumas, etc. Se você for a um arquiteto e lhe pedir para fazer o projeto de uma casa com 2 quartos ele fará e cobrará um preço. Se você for ao mesmo arquiteto e lhe pedir para desenhar uma casa com 4 quartos, uma escada, uma piscina e uma sacada, ele cobrará outro preço. TODOS os profissionais levam em consideração o nível de dificuldade ao colocar o preço de um serviço. Até uma faxineira cobra preços diferenciados. Se a casa for pequena é um preço, se for grande, ela cobra mais caro. O professor é o único profissional que tem que dar conta de todos os alunos por um único valor. Quanto vocês acham que a professora recebe a mais para cuidar de um aluno com um problema tão complexo como é o déficit de aprendizagem? Eu respondo: NEM UM CENTAVO! São exigidos uma atenção e um acompanhamento maior para esses alunos, mas ninguém quer pagar mais por isso.
Criticar a professora por não dar conta do problema? NUNCA!
Ela poderia se atualizar, procurar conhecer mais a respeito do déficit de aprendizado? Poderia sim, claro. Mas quando? Professor no Brasil tem que trabalhar dois ou três turnos se quiser viver com o mínimo de dignidade. Some-se a tudo isso a dificuldade de lidar com salas de aula lotadas, pais omissos e permissivos, um trilhão de programações escolares por ano, relatórios, etc. Se ela for aprender mais sobre o transtorno, quando preparará suas aulas? Que horas ela irá se dedicar à pesquisa acadêmica? Professor no Brasil só se preocupa com extensão pois não tem tempo de se preocupar também com a pesquisa. Somos apenas reprodutores, poucos de nós produzem o conhecimento. Ela poderia fazer isso nos míseros 20 minutos de intervalo que ela tem para comer, beber ou ir ao banheiro? Poderia! Mas ela não tem como fazê-lo porque já não tem mais direito ao descanso. O professor não pode descansar porque ele que tem que atuar como vigia para evitar que os alunos, que não são educados corretamente pelos pais em casa, 'destruam' a escola. O tempo que ela teria para sentar e descansar as pernas e a voz, será usado no meio do pátio correndo e gritando para lá e para cá atrás de crianças.
É muito fácil dizer que é necessário investir em inclusão. Vamos colocar na mesma sala aleijados, cegos, autistas, portadores de síndrome de down, surdos, mudos, portadores de TDAH... quem vai cuidar é o professor mesmo, né? É ele que vai ter que se desdobrar em 10 para dar conta de todo mundo, é ele que vai se estressar, é que ele que vai perder os cabelos... E se não der certo, como não deu no caso da professora de Sumaré? A gente faz o que vem sendo feito há anos: coloca a culpa no professor e o apedreja. Outra coisa: eu ainda não estou convencido de que a inclusão de todos os seres humanos dentro de uma mesma sala de aula seja realmente melhor para quem é diferente. Não consigo perceber como, em são consciência, alguém pode achar que uma sala com mais de 30 alunos seja ambiente adequado para uma criança que sofre com um problema como o transtorno de atenção.
Em minha ótica, o bilhete escrito pela professora desesperada é muito mais que um bilhete: é um atestado. São linhas escritas em tinta e papel que atestam a ineficiência de um sistema de ensino que se quer moderno, democrático e eficiente mas que demonstra cada dia mais que não passa de enrolação, descaso e opressão.