Recompondo-me do choro, termino de assistir à reapresentação do último capítulo da novela
A vida da Gente. O “Gente”, grafado com letra maiúscula, é proposital. Não me
recordo, por mais que me esforce, de nenhuma novela anterior ou qualquer outro
programa da TV brasileira que tenha retratado o ser humano de uma maneira tão
“Gente”. Sim, Gente com G maiúsculo, carregado de simbologia, de significados e
de grandeza. Gente que acerta e que erra. Gente que vibra, que mente, que
sonha, que se desespera, que ama, que odeia e que sofre. Gente que chora.
Minhas lágrimas
não foram gratuitas. Nunca são. Se tem uma coisa que eu costumo economizar na
vida, são as lágrimas. Não choro, em hipótese alguma, por pouca coisa. Não sou
desses que curtem fossa. Sou dos que se recusam a sofrer por antecedência e que
não fingem sentir o que não sentem, mas quando é para chorar, eu choro mesmo.
Choro com dor no corpo. Choro com cada célula do meu efêmero organismo e
confesso que poucas coisas me fazem tão feliz e me trazem tanto orgulho como
conjugar em minha própria carne o verbo chorar. Ao chorar, eu me reconheço e me
faço humano. Ao chorar eu abaixo a guarda e pratico o ato de me despir das
armaduras que a vida me impõe. Além da dor, só a arte é capaz de me fazer
chorar. E eu chorei com a A vida da Gente porque ela também é a minha vida.
A novela citada
se mostrou como um diferencial desde o seu início. Recordo-me de quando vi a
sua primeira propaganda. Sem nem saber direito do que trataria a trama, falei
para o amigo que estava ao meu lado: “Essa novela vai ser excelente, ou, pelo
menos, vai ser muito diferente”. Não me enganei em nenhum dos dois aspectos. A
vida da Gente foi bem diferente, e, também por isso, foi excelente.
O que fez dela
uma novela tão diferente? Tudo! Uma fotografia belíssima, diálogos profundos,
um texto primoroso, uma trilha sonora criteriosa, dores levadas ao extremo,
ausência de estereótipos e clichês, etc. A novela fugiu completamente do já tão
batido script das outras produções globais: a guerra de mocinhos contra vilões,
gente brigando pela presidência de uma empresa, os sotaques estranhos,
homossexuais cômicos e caricatos e jargões do tipo “né brinquedo não” e “Tô
rosa chiclete”. O último capítulo não teve o “Quem matou fulano”, nenhuma reviravolta
imprevista e nem os vilões se dando mal no final, quase sempre morrendo ou
enlouquecendo. Convenhamos, A vida da Gente nem parece ter sido produzida e
veiculada pela Rede Globo de Televisão.
E a trilha
sonora? A abertura trouxe, através da bela voz de Maria Gadú, a Oração ao tempo
de Caetano Veloso. Sem dúvida, uma das melhores letras no nosso baiano. Além
dela, tivemos Milton Nascimento, Zizi Possi, Rita Lee, Legião Urbana, Chico
Buarque, Elba Ramalho e Cássia Eller. É uma seleção de artistas que dispensa
comentários. Além deles, eu ainda destaco “Recomeçar”, interpretada por Tânia
Mara (a melhor música da trilha) e Atrás
da Porta, famosa pela interpretação de Elis Regina, magistralmente cantada
agora por Marina Elali, que, em minha opinião, tem a voz bem melhor que a de
Elis.
A ausência de um
único personagem protagonizando a trama foi, certamente, o maior de todos os
seus méritos. Como afirmou o diretor Jayme Monjardim (e eu concordo em gênero,
número e grau), o protagonista de A vida da Gente foi o texto. Uma novela que
em uma única cena cita Heráclito de Éfeso e João Guimarães Rosa e com eles
constrói uma discussão sobre a fluidez da vida, não é uma produção qualquer. Os
diálogos, colocados na boca de excelentes atores, ganharam vida e discutiram temas
de importância máxima na vida humana, como as relações familiares. Texto extenso.
Doloroso. Duro. O texto da novela, sempre carregado de sabedoria, me deixou ao
final de cada capítulo com a sensação de ter tomado um soco no estômago.
Ao citar A vida
da Gente como a minha vida, vejo-me correndo desesperadamente atrás do tempo
perdido e tentando devorar a vida como Ana Fonseca, me vejo na imaturidade de
Nanda, na orfandade de Tiago e de Francisco, na busca por uma maturidade e uma
inteligência emocional como a de Manuela, na dureza de Eva, na frieza de
Vitória, na vontade de vencer e provar que pode ir além de Sofia, no mundo
onírico de Marcos, nas dúvidas de Rodrigo, na insegurança do Sr. Wilson, no
trocar de pernas de Laudelino...
Eu também tenho
a minha novela. Eu também sou um ator. A vida da Gente, também é a minha vida.
Neste set de filmagens chamado Vida
eu represento a minha história num palco chamado Tempo. Danço de acordo com os
seus ritmos, espero de acordo com os seus caprichos, vejo o seu esculpir na minha
carne as suas marcas. Sofro, dou gargalhadas, brigo, luto... tudo no mesmo palco.
Sobre a
insistente alegação de alguns de que a novela não tenha sido tão boa porque não
alcançou as mesmas pontuações no IBOPE que as suas antecessoras, acho descabido.
Querer que A vida da Gente agrade ao grande público tanto quanto Araguaia ou
Cordel Encantado é a mesma coisa que querer que Khaled Housseini agrade tanto
quanto Paulo Coelho. Khaled explora e expõe a
dor mais aguda. Seus livros são densos, quase sufocantes. Quem leu O
caçador de pipas sabe bem do que estou falando. Só apela para a questão de
Ibope quem vê A vida da Gente apenas como
entretenimento, coisa que a novela nunca se propôs a ser. Quem reclama da falta
de humor, que vá ver a Mãe Iara (Aquele beijo), o Crô (Fina Estampa), o Tonho
da Lua (Mulheres de areia) nos outros horários. Eu prefiro pensar que A vida da
Gente seja como a obra de Clarice Lispector: Ou toca, ou não toca. Requer sensibilidade
e maturidade. O horário foi um problema: o horário das seis, hora em que
adultos estão no trabalho ou saindo dele, não é indicado para uma novela tão
densa. Adolescentes não assistiriam esse tipo de trama. O que eles gostam é de
pataquadas, coisas que não se encontra no folhetim em questão. Esperar que este
público imaturo conseguisse enxergar toda a sua beleza e a sua profundidade, é,
pelo menos, tolo.
Dizer que
aprendi seria um exagero. Muitas coisas eu já sabia, portanto, eu relembrei lições
preciosas. Ao final de cada capítulo, ao final de cada uma das catarses às
quais eu me submetia, me relembrava de que ninguém está 100% certo enquanto o
outro está 100% errado. Ninguém é doce o tempo todo. Nem todos são capazes de
mudanças radicais, nem todos são capazes de atos humanos, nem todos sabem o valor
do amor, da família e do perdão.
O tempo recebeu
da novela uma homenagem justíssima. A ele todos nós nos curvamos, por bem ou
por mal. Enquanto ele faz o que sabe fazer de melhor – passar – a vida da gente
continua. Os amores mudam, as prioridades mudam, prioridades se invertem, pessoas
se afastam, pessoas se aproximam, sonhos são perseguidos, outros tantos
abandonados, e a gente vive. Vive esperando. Vive buscando. Vive correndo atrás.
A vida da Gente é um devir. Um eterno vir a ser...