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sábado, 3 de março de 2012

A vida da Gente


Recompondo-me do choro, termino de assistir à reapresentação do último capítulo da novela A vida da Gente. O “Gente”, grafado com letra maiúscula, é proposital. Não me recordo, por mais que me esforce, de nenhuma novela anterior ou qualquer outro programa da TV brasileira que tenha retratado o ser humano de uma maneira tão “Gente”. Sim, Gente com G maiúsculo, carregado de simbologia, de significados e de grandeza. Gente que acerta e que erra. Gente que vibra, que mente, que sonha, que se desespera, que ama, que odeia e que sofre. Gente que chora.

Minhas lágrimas não foram gratuitas. Nunca são. Se tem uma coisa que eu costumo economizar na vida, são as lágrimas. Não choro, em hipótese alguma, por pouca coisa. Não sou desses que curtem fossa. Sou dos que se recusam a sofrer por antecedência e que não fingem sentir o que não sentem, mas quando é para chorar, eu choro mesmo. Choro com dor no corpo. Choro com cada célula do meu efêmero organismo e confesso que poucas coisas me fazem tão feliz e me trazem tanto orgulho como conjugar em minha própria carne o verbo chorar. Ao chorar, eu me reconheço e me faço humano. Ao chorar eu abaixo a guarda e pratico o ato de me despir das armaduras que a vida me impõe. Além da dor, só a arte é capaz de me fazer chorar. E eu chorei com a A vida da Gente porque ela também é a minha vida.

A novela citada se mostrou como um diferencial desde o seu início. Recordo-me de quando vi a sua primeira propaganda. Sem nem saber direito do que trataria a trama, falei para o amigo que estava ao meu lado: “Essa novela vai ser excelente, ou, pelo menos, vai ser muito diferente”. Não me enganei em nenhum dos dois aspectos. A vida da Gente foi bem diferente, e, também por isso, foi excelente.

O que fez dela uma novela tão diferente? Tudo! Uma fotografia belíssima, diálogos profundos, um texto primoroso, uma trilha sonora criteriosa, dores levadas ao extremo, ausência de estereótipos e clichês, etc. A novela fugiu completamente do já tão batido script das outras produções globais: a guerra de mocinhos contra vilões, gente brigando pela presidência de uma empresa, os sotaques estranhos, homossexuais cômicos e caricatos e jargões do tipo “né brinquedo não” e “Tô rosa chiclete”. O último capítulo não teve o “Quem matou fulano”, nenhuma reviravolta imprevista e nem os vilões se dando mal no final, quase sempre morrendo ou enlouquecendo. Convenhamos, A vida da Gente nem parece ter sido produzida e veiculada pela Rede Globo de Televisão.

E a trilha sonora? A abertura trouxe, através da bela voz de Maria Gadú, a Oração ao tempo de Caetano Veloso. Sem dúvida, uma das melhores letras no nosso baiano. Além dela, tivemos Milton Nascimento, Zizi Possi, Rita Lee, Legião Urbana, Chico Buarque, Elba Ramalho e Cássia Eller. É uma seleção de artistas que dispensa comentários. Além deles, eu ainda destaco “Recomeçar”, interpretada por Tânia Mara (a melhor música da trilha) e Atrás da Porta, famosa pela interpretação de Elis Regina, magistralmente cantada agora por Marina Elali, que, em minha opinião, tem a voz bem melhor que a de Elis.

A ausência de um único personagem protagonizando a trama foi, certamente, o maior de todos os seus méritos. Como afirmou o diretor Jayme Monjardim (e eu concordo em gênero, número e grau), o protagonista de A vida da Gente foi o texto. Uma novela que em uma única cena cita Heráclito de Éfeso e João Guimarães Rosa e com eles constrói uma discussão sobre a fluidez da vida, não é uma produção qualquer. Os diálogos, colocados na boca de excelentes atores, ganharam vida e discutiram temas de importância máxima na vida humana, como as relações familiares. Texto extenso. Doloroso. Duro. O texto da novela, sempre carregado de sabedoria, me deixou ao final de cada capítulo com a sensação de ter tomado um soco no estômago.


Ao citar A vida da Gente como a minha vida, vejo-me correndo desesperadamente atrás do tempo perdido e tentando devorar a vida como Ana Fonseca, me vejo na imaturidade de Nanda, na orfandade de Tiago e de Francisco, na busca por uma maturidade e uma inteligência emocional como a de Manuela, na dureza de Eva, na frieza de Vitória, na vontade de vencer e provar que pode ir além de Sofia, no mundo onírico de Marcos, nas dúvidas de Rodrigo, na insegurança do Sr. Wilson, no trocar de pernas de Laudelino...

Eu também tenho a minha novela. Eu também sou um ator. A vida da Gente, também é a minha vida. Neste set de filmagens chamado Vida eu represento a minha história num palco chamado Tempo. Danço de acordo com os seus ritmos, espero de acordo com os seus caprichos, vejo o seu esculpir na minha carne as suas marcas. Sofro, dou gargalhadas, brigo, luto... tudo no mesmo palco.

Sobre a insistente alegação de alguns de que a novela não tenha sido tão boa porque não alcançou as mesmas pontuações no IBOPE que as suas antecessoras, acho descabido. Querer que A vida da Gente agrade ao grande público tanto quanto Araguaia ou Cordel Encantado é a mesma coisa que querer que Khaled Housseini agrade tanto quanto Paulo Coelho.  Khaled explora e expõe a dor mais aguda. Seus livros são densos, quase sufocantes. Quem leu O caçador de pipas sabe bem do que estou falando. Só apela para a questão de Ibope quem vê A vida da Gente apenas como entretenimento, coisa que a novela nunca se propôs a ser. Quem reclama da falta de humor, que vá ver a Mãe Iara (Aquele beijo), o Crô (Fina Estampa), o Tonho da Lua (Mulheres de areia) nos outros horários. Eu prefiro pensar que A vida da Gente seja como a obra de Clarice Lispector: Ou toca, ou não toca. Requer sensibilidade e maturidade. O horário foi um problema: o horário das seis, hora em que adultos estão no trabalho ou saindo dele, não é indicado para uma novela tão densa. Adolescentes não assistiriam esse tipo de trama. O que eles gostam é de pataquadas, coisas que não se encontra no folhetim em questão. Esperar que este público imaturo conseguisse enxergar toda a sua beleza e a sua profundidade, é, pelo menos, tolo.

Dizer que aprendi seria um exagero. Muitas coisas eu já sabia, portanto, eu relembrei lições preciosas. Ao final de cada capítulo, ao final de cada uma das catarses às quais eu me submetia, me relembrava de que ninguém está 100% certo enquanto o outro está 100% errado. Ninguém é doce o tempo todo. Nem todos são capazes de mudanças radicais, nem todos são capazes de atos humanos, nem todos sabem o valor do amor, da família e do perdão.

O tempo recebeu da novela uma homenagem justíssima. A ele todos nós nos curvamos, por bem ou por mal. Enquanto ele faz o que sabe fazer de melhor – passar – a vida da gente continua. Os amores mudam, as prioridades mudam, prioridades se invertem, pessoas se afastam, pessoas se aproximam, sonhos são perseguidos, outros tantos abandonados, e a gente vive. Vive esperando. Vive buscando. Vive correndo atrás. A vida da Gente é um devir. Um eterno vir a ser...


Postado por Roney Torres às 14:51 7 comentários Enviar por e-mail Postar no blog! Compartilhar no X Compartilhar no Facebook
Marcadores: Televisão

quinta-feira, 1 de março de 2012

O Estado babysitter


Ando meio revoltado com as práticas jurídicas utilizadas neste país. Corrigindo: meio, não! Ando muito revoltado com o que tem sido praticado no Brasil no que diz respeito à elaboração, manutenção e cumprimento das leis. Tenho me sentido alarmado ao ver como o Estado anda se portando atualmente. A notícia do expurgamento do dicionário Houaiss foi a gota d'água. Vejamos a notícia:

O Ministério Público Federal (MPF) entrou com ação na Justiça Federal em Uberlândia (MG) para tirar de circulação o dicionário Houaiss, um dos mais conceituados do mercado. Segundo o MPF, a publicação contém expressões "pejorativas e preconceituosas", pratica racismo aos ciganos e não atendeu recomendações de alterar o texto, como fizeram outras duas editoras com seus dicionários.

"Ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura cigano significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, ou que se trata de acepções carregadas de preconceito ou xenofobia, fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação", afirmou. "Trata-se de um dicionário. Ninguém duvida da veracidade do que ali encontra. Sequer questiona. Aquele sentido, extremamente pejorativo, será internalizado, levando à formação de uma postura interna pré-concebida em relação a uma etnia que deveria, por força de lei, ser respeitada", acrescentou o procurador.   Fonte: [http://migre.me/85DTR]

Cabe ao Ministério Público Federal (MPF): defender os direitos sociais e individuais (direito à vida, dignidade, liberdade, etc.) dos cidadãos, atuar sempre que uma questão envolver interesse público, fiscalizar o cumprimento das leis editadas no país e daquelas decorrentes de tratados internacionais assinados pelo Brasil, atuar como guardião da democracia, assegurando o respeito aos princípios e normas que garantem a participação popular. Não vejo, dentro destas atribuições supracitadas, nada que endosse uma atitude como a tomada em relação ao Houaiss. Penso que a decisão tomada pelo MPF deva ser considerada como censura, o que é intolerável. Quanto ao pronunciamento do procurador, devo chamar a atenção para o fato de que uma etnia deve ser respeitada por ser humana, não por força de lei alguma.

Minha mãe conta que quando era criança (e isso já tem mais ou menos meio século), seus pais a advertiam a tomar cuidado com os ciganos. Ela vivia na zona rural e diz que quando se sabia da notícia da chegada de um grupo de ciganos, toda a comunidade se punha em alerta. Desde aquela época já havia a fama de que os ciganos costumavam furtar. Ela se lembra bem de que 'coincidentemente' com a chegada dos ciganos ocorria o sumiço de ovos, galinhas e animais de pequeno porte em todas as fazendas da região. De igual modo, os feirantes também os temiam. Sempre que ciganos entravam nas feiras, mercadorias sumiam. Essa fama deles serem ladrões, espertalhões e coisas do gênero é muito antiga, sendo ela historicamente construída.

Não estou inteirado acerca das práticas socioculturais dos ciganos na atualidade, mas penso que a imagem que se faz deles, foi criada por eles mesmos e não é um dicionário que vai melhorá-la ou piorá-la. O uso que o povo faz da língua não é da competência do dicionarista. A fama de trapaceiros dos ciganos antecede ao Houaiss. Portanto, condenar um dicionário por dizer aquilo que todo mundo diz, é algo imbecil. Mais imbecil ainda é alguém acreditar que um dicionário seja ou possa ser politicamente correto. Mais ainda: se formos condenar o Houaiss iremos também ter que condenar um carteiro quando ele levar uma carta de conteúdo racista. Para mim, assim como para Túlio Vianna, escritor da área do Direito Penal, daria praticamente no mesmo. O Ministério Público quer nos livrar do preconceito praticando censura e atacando sintomas ao invés das causas. Que fique claro que eu repudio totalmente qualquer forma de preconceito contra quem quer que seja. Apenas acho que a alegação do MPF não cabe, mesmo porque o próprio dicionário avisa que se trata de expressões de ordem pejorativa.

No mesmo patamar de proteção criada pelo Estado foi sancionada uma lei que obriga todas as redes de fast food do Estado de São Paulo a divulgar aos consumidores as tabelas de informações nutricionais e de calorias dos alimentos servidos nos estabelecimentos. Que Estado MARAVILHOSO nós temos, hein? Não deu em vocês também um super orgulho de serem brasileiros? Vejam que fantástico: temos um governo que zela pela nossa saúde, pela nossa educação e que nos recomenda até onde devemos fazer xixi. Penso que a República Federativa de Brasil poderia ser chamada de República Babysitter do Brasil. Não temos um Estado, temos uma babysitter, uma babá.

É pertinente a pergunta: Estamos sendo vistos como bebês ou como retardados?

Que Estado é esse que nos quer "proteger" de tantos males tão inócuos? Sei ler, escrever e interpretar o que está escrito. Não preciso de um Estado que me queira "proteger" até do dicionário e das calorias dos alimentos. Não preciso de uma babá. Sobretudo, não preciso de tamanha hipocrisia. Não preciso de um Estado que finge estar preocupado comigo ou com quem quer que seja. Quem acha que estou exagerando, olhe para a situação da educação e da saúde neste país. A maioria absoluta das pessoas que realmente precisaria destes tipos de ações não tem escola para estudar, não foi ensinada a ler corretamente, não tem a cultura (no sentido de costume) de procurar o significado de verbetes no dicionário e não tem R$ 15,00 para bancar um sanduíche em fast foods. Aliás, o povo que anda passando fome não está preocupado em engordar, pelo contrário, está é precisando ganhar uns quilinhos mesmo.

Vivemos num país de gente sem educação, que não sabe sequer se portar dentro de um cinema ou de um teatro, que não respeita leis de trânsito, códigos de ética, que não tem a leitura como costume diário e o governo está preocupado com UM verbete de um dicionário muito bem conceituado. Segue mais um exemplo: a campanha empreendida na TV para que as pessoas não urinem em vias públicas. Pelo amor de Deus! Que país é esse onde é necessário solicitar em rede nacional que a população não urine na rua?

Se a maioria da população necessita desse tipo de intervenção é porque o Estado não cumpriu corretamente a lição de casa e agora fica querendo fazer remendos. Ele deve, ao invés de querer servir de muletas ou de babá para um povo que não sabe andar com as próprias pernas, dar a esse povo condições de ter autonomia para pensar e tomar as suas próprias decisões. Chega de ser um país que é órfão de cultura, pai da ignorância e herdeiro da alienação.

No mais, caríssimo Ministério Público Federal, temos injustiças sociais para sanar, crimes hediondos para punir, corruptos para prender, hospitais para construir, crianças para zelar, mendigos para tirar das ruas e alimentar e um povo que precisa aprender a ler o mundo, interpretá-lo e fazer as suas próprias escolhas.
Postado por Roney Torres às 11:34 0 comentários Enviar por e-mail Postar no blog! Compartilhar no X Compartilhar no Facebook
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Guanambi, Bahia, Brazil
Baiano. Professor. Capricorniano. 34 anos. Dependente de música, livros e internet. Apaixonado por gente inteligente.
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