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terça-feira, 26 de junho de 2012

Nossa vergonha em tinta e papel


Corre velozmente, como tudo que cai na internet, a imagem digitalizada de um bilhete enviado por uma professora da cidade de Sumaré, interior de São Paulo, aos pais de um garoto que todos nós vulgarmente classificaríamos com um "encapetado". No bilhete, a professora sugere aos pais do menino que desconsiderem as indicações de "psicólogos fajutos" que mandam que a educação fique apenas na esfera do diálogo e  que façam uso de cintadas e varadas para evitar que o estudante entre em encrencas. 

Segundo os pais do aluno, o menino é vítima de bullying por parte dos colegas porque a professora diz na frente da turma inteira que ele tem problema de cabeça, que tem doença mental, que faz tratamento e que nunca será ninguém na vida. 

Quem é o tal aluno "encapetado"? É um estudante de 12 anos que já passou por diversos profissionais por causa do seu problema. Ao que consta, o menino, que está em tratamento com uma psicóloga, sofre de um mal muito recorrente nos dias hoje: déficit de aprendizagem. Para os menos familiarizados com os novos termos criados pela psicologia, digamos que alunos outrora considerados como encapetados hoje são chamados de portadores de transtornos de déficits que estão ligados à hiperatividade, impulsividade, desatenção e problemas de aprendizagem, como a dislexia. O aluno considerado burrinho ontem, hoje é disléxico e tem déficit de atenção e o aluno capeta é hiperativo e impulsivo, e por aí vai. Notem que estou falando de maneira rasa, sem aprofundamento nos termos, porque não é essa a minha intenção aqui. 

A minha primeira reação ao ler ao bilhete foi pensar: "Que mulher burra! Ela mandou por escrito, produziu uma prova contra si mesma!". Após analisar mais friamente, pensei numa outra possibilidade, a de que a burrice era, na verdade, obra do desespero. Eu penso que para uma professora mandar um bilhete desses para o pai de  um aluno, ela deve estar totalmente desesperada. Não foi por maldade. O bilhete, em minha opinião, é um pedido de ajuda. A professora está dizendo com todas as letras: "Eu não dou mais conta de lidar com o problema". É uma forma torta, talvez tosca, mas foi a maneira que ela encontrou.

A minha segunda reação foi verificar que me chocou muito mais a quantidade de erros relacionados à escrita do bilhete do que o conteúdo em si. De qualquer maneira, dou um desconto porque imagino que ela devia estar alterada quando escreveu o bilhete e talvez o nervosismo tenha feito com que não percebesse erros na formulação de uma das frases ou na concordância. Levemos em conta que ela é professora de português e, em momentos de tranquilidade, erros tão crassos não passariam desapercebidos. 


Não vou perder tempo aqui discutindo se os pais devem ou não fazer uso da força física na educação dos filhos porque a minha opinião já foi expressa em vários outros posts aqui. Eu acho que os pais podem e devem bater nos filhos, seja como medida punitiva, preventiva ou coercitiva. Chamo, todavia, atenção para o fato de que devem ser observadas a finalidade e intensidade. Sou totalmente contra bater gratuitamente e  sem critérios, logo, não estou defendendo espancamentos. 

Vamos ao que realmente interessa: uma análise da ação da professora. Talvez a professora seja realmente o que muita gente pensa sobre ela: incompetente, frustrada, fria... mas também pode não ser. E não é um bilhete escrito em um momento de ira que irá determinar toda a sua carreira. Não há reclamações contra ela antes do ocorrido, o que me leva a crer que ela não deve ser tão incompetente assim. Tentei descobrir a sua idade, mas não consegui. Ela pode ser uma senhora já bastante cansada de anos de magistério, mas pode também ser uma moça de vinte e poucos anos ainda amargando os anos da inexperiência. Seja ela nova ou velha, uma coisa é certa: NÃO TEMOS FORMAÇÃO para lidar com tal tipo de transtorno. Eu digo "temos" porque me incluo dentro de tal estatística já que também sou professor. Em nossos cursos de licenciatura, temos disciplinas como Didática, Metodologia ou Estágio Supervisionado que nos ensinam a dar aulas, a usar recursos, a fazer aulas mais dinâmicas... Mas, para quem? Para alunos NORMAIS, ou, pelo menos, ditos normais. Somos ensinados a ensinar para alunos sem problemas, sem traumas, sem transtornos, que adoram estudar e que, via de regra, amam livros e tem sede de conhecimento. Isso é muito, muito, muito diferente do que se é encontrado nas salas de aulas, de escolas públicas e privadas, de norte a sul do Brasil. 

Querem saber de uma grande verdade? Ei-la: Professor virou saco de pancadas do mundo. Se você entrou aqui achando que eu iria manifestar o meu repúdio a tal atitude tão hedionda em relação ao coitadinho do aluno, talvez se frustre. Eu não serei, em hipótese alguma, mais um socar esse saco de pancadas que a categoria de professores se tornou. A professora já foi afastada do cargo e já está sendo tratada como uma bandida. Não estou defendendo e muito endossando a sua atitude. Ela errou e errou feio, mas não serei mais um hipócrita a fechar os olhos para tal situação e a tratá-la como uma bruxa malvada. Para mim, ela é tão vítima quanto o próprio aluno. 

No pedaço de papel escrito a tinta (e talvez com lágrimas) está expresso o pedido de socorro e ao mesmo tempo um "Basta!" que é de toda uma classe que tem sido oprimida há décadas por um sistema mesquinho que nos cobra cada vez mais e nos dá cada vez menos.

Um advogado pode escolher quem quer como cliente. Ele pode escolher se quer defender ou não um acusado de um crime. Um professor, ao contrário, tem que ser professor de todo mundo que lhe colocam nas mãos. A medicina cada vez mais tem se subdividido em categorias e especialidades. Um cardiologista estuda sobre o coração e se dedica a resolver problemas relacionados ao coração. Fígado, baço, pulmões ou rins não lhe interessam. O professor, ao contrário, tem que estudar sobre tudo e lidar com todos os problemas: dislexia, falta de educação, déficit de aprendizagem, déficit de atenção, traumas, etc. Se você for a um arquiteto e lhe pedir para fazer o projeto de uma casa com 2 quartos ele fará e cobrará um preço. Se você for ao mesmo arquiteto e lhe pedir para desenhar uma casa com 4 quartos, uma escada, uma piscina e uma sacada, ele cobrará outro preço. TODOS os profissionais levam em consideração o nível de dificuldade ao colocar o preço de um serviço. Até uma faxineira cobra preços diferenciados. Se a casa for pequena é um preço, se for grande, ela cobra mais caro. O professor é o único profissional que tem que dar conta de todos os alunos por um único valor. Quanto vocês acham que a professora recebe a mais para cuidar de um aluno com um problema tão complexo como é o déficit de aprendizagem? Eu respondo: NEM UM CENTAVO! São exigidos uma atenção e um acompanhamento maior para esses alunos, mas ninguém quer pagar mais por isso. 

Criticar a professora por não dar conta do problema? NUNCA!

Ela poderia se atualizar, procurar conhecer mais a respeito do déficit de aprendizado? Poderia sim, claro. Mas quando? Professor no Brasil tem que trabalhar dois ou três turnos se quiser viver com o mínimo de dignidade. Some-se a tudo isso a dificuldade de lidar com salas de aula lotadas, pais omissos e permissivos, um trilhão de programações escolares por ano, relatórios, etc. Se ela for aprender mais sobre o transtorno, quando preparará suas aulas? Que horas ela irá se dedicar à pesquisa acadêmica? Professor no Brasil só se  preocupa com extensão pois não tem tempo de se preocupar também com  a pesquisa. Somos apenas reprodutores, poucos de nós produzem o conhecimento. Ela poderia fazer isso nos míseros 20 minutos de intervalo que ela tem para comer, beber ou ir ao banheiro? Poderia! Mas ela não tem como fazê-lo porque já não tem mais direito ao descanso. O professor não pode descansar porque ele que tem que atuar como vigia para evitar que os alunos, que não são educados corretamente pelos pais em casa, 'destruam' a escola. O tempo que ela teria para sentar e descansar as pernas e a voz, será usado no meio do pátio correndo e gritando para lá e para cá atrás de crianças. 

É muito fácil dizer que é necessário investir em inclusão. Vamos colocar na mesma sala aleijados, cegos, autistas, portadores de síndrome de down, surdos, mudos, portadores de TDAH... quem vai cuidar é o professor mesmo, né? É ele que vai ter que se desdobrar em 10 para dar conta de todo mundo, é ele que vai se estressar, é que ele que vai perder os cabelos... E se não der certo, como não deu no caso da professora de Sumaré? A gente faz o que vem sendo feito há anos: coloca a culpa no professor e o apedreja. Outra coisa: eu ainda não estou convencido de que a inclusão de todos os seres humanos dentro de uma mesma sala de aula seja realmente melhor para quem é diferente. Não consigo perceber como, em são consciência, alguém pode achar que uma sala com mais de 30 alunos seja ambiente adequado para uma criança que sofre com um problema como o transtorno de atenção.

Em minha ótica, o bilhete escrito pela professora desesperada é muito mais que um bilhete: é um atestado. São linhas escritas em tinta e papel que atestam a ineficiência de um sistema de ensino que se quer moderno, democrático e eficiente mas que demonstra cada dia mais que não passa de enrolação, descaso e opressão.

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segunda-feira, 28 de maio de 2012

Cada macaco no seu galho.

Ontem tive o desprazer de ler coisas tão desagradáveis numa rede social que me deixaram com um gosto de fel na boca. Antes de relatar o acontecido, quero deixar claro que essa postagem não tem nenhuma intenção de denegrir, descredenciar ou manchar a índole, o trabalho ou a competência de ninguém. Deixo claro que a pessoa de quem tratarei aqui é um professor da área de Direito em mais de uma instituição de ensino superior, um excelente profissional, com excelentes referências, bem preparado (até onde tenho conhecimento, tem nível de mestrado), mas nem por isso está isento de errar e, em minha opinião, perdeu  ótimas oportunidades de ficar calado.

Vejamos: o supracitado indivíduo postou numa rede social  um comentário sobre o esporte popularmente conhecido como MMA. Em seu comentário ele disse que o MMA é um retrocesso, um incentivo à violência, uma invasão do espaço dos "verdadeiros" esportes e que se trata apenas de um modismo midiático. São tantas falácias dentro de tão curto espaço que chega a ser vergonhoso. 

Provavelmente o "nobre colega" (como os advogados costumam tratar-se dentro dos tribunais) desconhece a máxima popular que diz que cada macaco deve manter-se no seu galho. Se ele não é da área educação física, não está credenciado a dizer qual esporte é verdadeiro e qual é falso. Sua formação em Direito não lhe confere direitos de conceituar o que é esporte, mesmo porquê esse terreno conceitual é muito movediço e pantanoso. Até mesmo os profissionais formados em áreas diretamente ligadas ao esporte têm dificuldade em estabelecer conceitos e demarcar os limites do que seja esporte, jogo e luta, haja vista que em muitos casos eles estão extremamente imbricados.

Provavelmente o professor desconhece algumas coisas básicas, como o histórico do MMA. O termo MMA significa, a grosso modo e em sua forma aportuguesada, artes marciais mistas. É uma mistura de técnicas de vários tipos de artes marciais e remonta aos jogos olímpicos gregos ainda no ano de 648 d.C. Se é uma moda, portanto, é uma moda que já existe há bastante tempo. Ao contrário do que ele pensa, não é o esporte que está ficando popular por causa da mídia, é a mídia que está abrindo espaço porque o esporte já é do gosto popular. Ora, não sejamos tolos, desde a antiguidade a humanidade já tem uma queda por sangue. O próprio Sigmund Freud em seus estudos debruçou-se sobre o tema da violência e percebeu que, ao lado da sexualidade, ela tem fortíssima propagação entre os impulsos humanos. Se existe há tanto tempo e é uma combinação de outras artes marciais, o MMA não pode ser considerado um retrocesso. No máximo, ele seria uma continuação do retrocesso (se fosse o caso). E mais: se o MMA é uma selvageria, devemos colocar no mesmo pacote o jiu-jitsu, o muai-thay e todas as outras lutas. Se levarmos em conta que só ocorre violência quando há um agressor e um agredido, não podemos considerar o MMA como uma violência, logo, também não é selvageria. Basta entender o mínimo sobre o esporte para saber que os competidores são conscientes do perigo, preparados fisicamente, estão em condições de igualdade e são beneficiados e protegidos por regras que regem o esporte. Existe um regulamento! MMA não é uma bagunça e eles não se matam!

Ao citar a política do pão e circo e comparar os lutadores de MMA aos gladiadores da Roma Antiga, ele entra em um outro território que não é o dele, é dos historiadores. Entrando nessa seara que não domina, ele comete um grave anacronismo (tentativa de aplicar o costume de uma época a outra): diz que os gladiadores estão retornando com força total. Reparem: gladiadores e lutadores de MMA não são a mesma coisa. Os gladiadores eram em sua maioria escravos e não tinham a opção de não lutar. Os lutadores de MMA o fazem por opção e não por imposição. Também temos que levar em conta que gladiadores perdiam suas vidas em arenas por estarem em um confronto sem regras e onde a morte era bem vinda. O MMA tem inúmeras regras. E mais ainda: o fator que eternizou a luta de gladiadores como peça  fundamental da política do pão e circo não foi a violência cometida e sim a espetacularização. Não precisa ser violento para ser pão e circo. Qualquer coisa pode ser parte de uma política de pão e circo, qualquer espetáculo, qualquer coisa que desvie a atenção do povo dos problemas políticos. Olhando por tal ótica, o futebol se enquadra perfeitamente. 

A acusação de que o esporte incita à violência é a mais tola de todas. Se formos dizer que as artes marciais incentivam a violência, devemos considerar também que a Fórmula 1, o motocross e outras corridas incentivam o excesso de velocidade. É bem elementar. Acho engraçado que nunca chegou ao meu conhecimento  NENHUM caso de pancadaria e quebra-quebra depois das lutas do MMA ou UFC, já em esportes "pacíficos" e "civilizados", como o futebol, a violência dos torcedores é recorrente. 

Infelizmente, isso foi só o começo. Posteriormente, ele disse que o MMA era o domínio da irracionalidade e que tinha a sensação de que a massa encefálica dos lutadores era afetada por tanta selvageria e que eles não deviam possuir discursos racionais. Conseguiram entender a gravidade do discurso? Insinuar que um lutador seja incapaz de discursos racionais é cometer a leviandade de generalizar e propagar um preconceito. É uma insinuação (velada, obviamente) de que todo lutador é burro. Estereotipação é o nome do que ele está fazendo e inscreve-se no mesmo discurso preconceituoso que diz que toda loura é burra, que todo pobre é ladrão, que todo negro é favelado, que todo gay é promíscuo, que toda mulher que gosta de futebol é sapatão e que todo homem tatuado é um malandro.

Após receber uma chuva de comentários discordantes, ele chegou a uma conclusão: nos dividimos em dois grupos, os que gostam da selvageria e os que preferem a racionalidade. Que pensamento maniqueísta mais tosco! Quer dizer que a gente só pode ser preto ou branco, bom ou mau, selvagem ou racional? Não somos muito mais complexos que isso? Quer dizer que se eu gostar de assistir uma luta eu estou condenado a viver na irracionalidade? Penso em quão tola uma pessoa é ao pensar que mesmo a selvageria não pode se inscrever no terreno da racionalidade. Os europeus cometeram a selvageria de exterminar tribos indígenas inteiras, mas nem por isso eles foram irracionais. A selvageria foi cometida em nome de uma política de dominação que lhe era lucrativa, logo, racional. Nem todo mundo que comete selvageria é irracional.

Não podendo me calar diante de tantos equívocos, eu disse que ele estava sendo generalista e preconceituoso. Ele, em contrapartida, me deu uma "dica", a de que eu deveria tomar cuidado com as minhas conclusões, e não deveria falar de quem não conhecia. Será que ele conhece todos os lutadores de MMA para estar tendo a sensação de que eles não tem discursos racionais? 

O fato é que as pessoas precisam entender que quando elas criam um tópico depreciativo sobre alguma coisa baseando-se em "sensações" que elas tem, estão dando aos outros o direito de também julgá-las baseando-se em "sensações" tidas sobre elas. Somamos a isso a intolerância: ele pode ter sensação de que lutadores de MMA são seres desprovidos de racionalidade mas eu não posso ter a sensação de que ele está sendo preconceituoso e generalista. Bem maduro, não? O protagonista da nossa história deveria também conhecer outra máxima popular, a que diz que quem fala o quer, ouve o que não quer. E mais: para a gente chegar numa rede social e criticar alguma coisa a gente tem que ter o mínimo de informação a respeito dela. Até para falar mal, é preciso conhecer. A relevância do comentário também poderia ser observada. Já dizem os orientais: "Quando fores falar, cuida para que as suas palavras sejam melhores do que o silêncio". No português claro: se for para falar merda, fica calado.


A título de informação para o nobre colega e demais interessados, as lutas são trabalhadas pelos profissionais de educação física até mesmo na escola por ser elemento da cultura corporal e, ao contrário de incitar à violência, tem outras finalidades: despertar a consciência corporal, aprimorar as habilidades, melhorar a postura e o equilíbrio além de aumentar a força, a agilidade, o reflexo e a capacidade de concentração. As artes marciais possuem inclusive, direções filosóficas e são reconhecidas como esporte por fomentar o método da autodefesa, exercício de condicionamento físico e desenvolvimento espiritual. Sendo assim, a despeito do que o nosso advogado ache ou deixe da achar, as artes marciais são esportes legitimados por quem é de direito, e, portanto consideradas como esporte tão verdadeiro como o futebol, o tênis, o vôlei ou a Fórmula 01 que já são (muito mais que o MMA) explorados pela mídia há décadas e ninguém fala nada.

No fim das contas, ficou o aprendizado: aprendi que o acúmulo de funções e títulos acadêmicos não são  sinônimo de gente tolerante, consciente, esclarecida e que ainda estamos longe, muito longe, de conseguirmos vencer os preconceitos e nos libertarmos da maldita mania de depreciar o outro para nos sentirmos melhores, mais racionais e mais civilizados. 
Postado por Roney Torres às 15:41 1 comentários Enviar por e-mail Postar no blog! Compartilhar no X Compartilhar no Facebook

domingo, 22 de abril de 2012

Amanhecer

Abriu os olhos. Rolou mais uma vez pela cama. Naquela manhã tão especial, a alma havia sido aberta junto com seus olhos. Quantas decepções seriam necessárias para se criar uma desilusão? Quantas mentiras são necessárias para o esvaziamento de um coração? Quanta dor e quanto descaso são necessários para provocar uma libertação? Quanta desumanidade é necessária para fazer secar o afeto de alguém?
Fechou os olhos. Rolou mais uma vez na cama. Naquele momento, com os olhos cerrados, viu seus últimos dias desfilarem diante de si. Buscou explicações, cavou enlouquecidamente atrás de argumentos, tentou cravar suas unhas nos galhos mais fortes da árvore da compreensão, mas já era tarde demais: já havia caído. Havia caído e se arrebentado no chão de si mesma. Caiu em si. Pensou no amor. Tentou se encaixar num mundo que não era mais aquele que havia escolhido para si. 
Rememorou. Reverberou. Descobriu que sem querer e sem perceber foi deixando de ser. Não era mais a pessoa de alguns meses atrás. Descobriu também que a pessoa com quem pensava dividir a cama e a vida já havia partido. Ou será que tinha realmente chegado algum dia? Engoliu secamente uma saliva que era tão escassa quanto aquela eternidade que sonhara para si. Pensou mais uma vez no amor. Pediu respostas e elas não vieram. Não haviam mais medidas paliativas a serem tomadas. Naquele dia, após dois ou três dias de um abandono presente, viu o quanto estava só. 
Reabriu os olhos. Alguma decisão precisava ser tomada. Não havia mais a menor chance de permanecer naquela teia. Pensou no outro e pensou em si. Procurou culpados. Procurou inocentes. Não os achou. O que viu com os olhos da alma, que se arregalavam naquele momento, foram dois seres dentro de um turbilhão. Em meio a tentativas de sobrevivência, apunhalavam-se.  
Levantou-se.Olhou-se no espelho e ele, com implacável sinceridade, mostrou-lhe que a dor e o amor são tão próximas que às vezes se misturam. Pensou no outro. Viu que era alguém que não se importava. Nem a sua dor, nem a sua doença, nem a sua alegria lhe interessavam. Pensou nas palavras de Renato Russo: tem gente que não sabe amar. Haveria como culpá-lo? Naquele momento sua memória havia se transformado em cinzas. Lembranças de uma noite de amor num hotel, de um passeio pela praia, de um encontro no meio de uma festa de universidade, de sussurros num quarto... simplesmente haviam se tornado pó. Não estava mais disposta a ver a sua força e a sua determinação serem confundidos com falta de sentimentos. Cansou de ser tratada como pedra. 
Percebeu que, ao invés de estar num leito de amores, estava num ringue e, se não encontrava em si mesma a capacidade de dar um ponto final àquela situação, daria ao outro os motivos para fazê-lo. Mentiu. Ridicularizou. Zombou. Naquele momento, amaldiçoou a sua família até a terceira geração não poupando nem o cachorro, nem a casa, nem o papagaio. Rugiu coisas que certamente lhe doeram mais dizer do que ao outro ouvir. Era necessário. Não poderia mais viver naquela situação. Se o preço para ser amada era livrar-se daquele a quem amava, ela estava disposta a pagá-lo. Não podia mais conceber a ideia de viver num relacionamento onde mais se cortavam do que se afagavam. Estavam sendo tristes acompanhados e ser triste acompanhado é mais doído do que ser triste sozinho. 
Saiu do canto da vida. Decidiu novamente caminhar, dobrar esquinas, se enveredar por becos tortuosos. Decidiu que preferia a sensação de caminhar sozinha do que a de estar abandonada quando mais se precisava. Sua companhia agora seria o tempo e a liberdade o seu refúgio. Esperaria por outros dias, outros tempos, outros motivos, outros amores e, quem sabe, pelo seu amor de volta. 
Sendo assim, foi. Na mochila, a vontade de viver. Nos bolsos, motivos para ser feliz. No coração, esperança. Na mente, a certeza de que ser feliz é uma obrigação.
Postado por Roney Torres às 21:31 0 comentários Enviar por e-mail Postar no blog! Compartilhar no X Compartilhar no Facebook
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Guanambi, Bahia, Brazil
Baiano. Professor. Capricorniano. 34 anos. Dependente de música, livros e internet. Apaixonado por gente inteligente.
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